domingo, 18 de novembro de 2012

Cyro Medeiros: A história de um desbravador

Imagem disponível no site: http://www.seculodiario.com.br/arquivo/2008/janeiro/07/index.asp acessado em 08/07/2012.


Caros amigos, a partir desta postagem iremos reproduzir uma série de reportagens (entrevistas) com personagens de destaque, verdadeiros "desbravadores" no processo de colonização do norte do Espírito Santo. Foram feitas pelo jornalista Rogério Medeiros e publicadas no jornal "A Tribuna" de Vitória em 1974. Alguns dos entrevistados como: Eugênio Cunha, padre Zacarias e Floriano Rubim, tiveram participação efetiva na história veneciana, porém outros, como Cyro Medeiros, José Merçon e Djalma Borges, apesar de não terem tido uma atuação direta em Nova Venécia, estão relacionados a regiões limítrofes e questões direta ou indiretamente importantes para nós, como o Contestado ou a construção da Rodovia que ligou Nova Venécia à Colatina. Estamos diante de fontes primárias para a História da Colonização do Norte do Espírito Santo, em especial, de Nova Venécia. Rogério Piva (editor do blog).


Por ROGÉRIO MEDEIROS, publicado on-line com o título original "A história de um desbravador", no site: http://www.seculodiario.com.br/ na seção Arquivo - Reportagens Especiais.

Com essa reportagem, se inicia a história dos seis homens que desbravaram o norte do Espírito Santo, numa epopéia que lembra muito a velha ação dos bandeirantes por ocasião do estabelecimento das fronteiras do País. Todos eles dão aqui o seu depoimento do período em que viveram na floresta, no meio dos bandidos, criando vilas e cidades, abrindo estradas, atirando, matando e defendendo-se.

Os fatos são narrados diretamente pelos próprios personagens, a partir do meu velho pai, Cyro Medeiros, que por volta de 30 abriu a primeira estrada na região. Segue com Eugênio Cunha e o médico José Merçon, que atuaram em favor da ampliação do território capixaba, prossegue com a rica vida do padre Zacarias, um sacerdote de terço na mão catequizando bandidos, entra na legendária figura do capitão Djalma Borges, o mais temido militar que andou por lá, encerra com o pacífico Floriano Rubim, mensageiro da paz da zona contestada.

Eles fazem um pouco da história, mas não a história propriamente da região, que é muito mais rica e envolve outras personagens importantíssimas. Infelizmente, várias já morreram e outras não foram encontradas. De qualquer maneira, você está agora diante do homem que fez a primeira estrada, do que dirigiu o primeiro serviço de Colonização, do primeiro médico, do primeiro sacerdote, do militar que penetrou na área na frente, e do homem que deu jeito no contestado.

Para mim, essa matéria tem um valor inestimável: é que ainda cheguei a tempo de mostrar o meu velho pai, que atualmente enfrentou com galhardia e a valentia de sempre uma traiçoeira e incurável doença que acabou levando a melhor sobre ele. Morreu em seguida a essa entrevista.

Cyro Medeiros, com o seu xará Cyro Pitanga, foi quem praticamente construiu a primeira estrada no norte do rio Doce, acima de Colatina, onde existiam apenas ramais de madeireiros. Foi um trecho de 30 quilômetros, da entrada de Marilândia a São Gabriel da Palha.

Isso ocorreu em 1930, tendo custado dezenas de vidas, ceifadas pelo impaludismo. Mesmo com a presença constante do impaludismo, por essa estrada penetraram os corajosos e anônimos agricultores que fizeram as primeiras propriedades na região, embora, também, tivessem que enfrentar os animais e os bandoleiros das florestas.

No relato do velho Cyro, dado aos 76 anos de idade, constam também tipos que fizeram a epopéia dos bandeirantes capixabas, entre eles ressalta a figura de Leão do Norte. A sua história está inteira aqui, onde se acha ainda descrita, a metamorfose de Colatina, que de uma simples vila se transforma, de repente, no maior centro madeireiro do País, graças à infatigável atividade de alguns homens que enfrentaram a floresta e consumiram todo o jacarandá, a peroba existente, e os enormes jequitibás, que se impunham às demais árvores.

O que diz Cyro:

Depois da Revolução de 30, o governo do Bley achou importante abrir uma estrada para penetrar na floresta acima do rio Doce (Mata Atlântica) e abrir perspectiva para novos núcleos de colonização. Depois de Colatina só existia um trecho de 20 quilômetros, muito precário, feito por madeireiros. Eu fui com o xará Cyro Pitanga fazer esse outro trecho. Era prefeito de Colatina Ademar Távora. Fomos contratados pelo secretário de Agricultura, Seabra Muniz, que era um engenheiro, genro de Bernardino Monteiro.

O contrato era de prosseguimento do trecho dos madeireiros até São Gabriel. Eu ia pela primeira vez à região, mas tinha experiência de floresta de Mato Grosso. Pelas informações que recebi, supunha que iria realmente penetrar em outra mata virgem. Mas lá chegando notei que a Companhia Territorial, organizada pelo Governo e dirigida e dirigida por Atílio Vivacqua e Aryzio Vianna, pai de Ary Vianna, preparava já a sua povoação. Já haviam vendido alguns terrenos, próximos até ao aldeamento dos índios botocudos: O primeiro lugar que foi fundado foi São Domingos, com o nome de Café, por causa de um único pé que encontramos lá.

Como o governo do Estado não tinha recurso para fazer uma boa estrada, que seria de oito metros, contratou conosco uma precária de apenas três metros. Diziam sempre que estavam mesmo é empenhado em povoar a região. Mas os que primeiro se aproveitaram dessa nova estrada foram novamente os madeireiros que através dela abriram outros ramais para as matas. A minha tenda e acampamento ficavam numa buraca no entroncamento para Nova Itália, a caminho hoje Marilândia e Governador Lindenberg. Por causa de sua posição no fundo de dois morrinhos, levou o nome de Rancho Fundo. Praticamente a minha estrada foi daí para frente.

O Rancho Fundo foi de uma tradição muito grande. Foi chamado assim por causa da música, Rancho Fundo. Foi colocado por um sujeito que veio acompanhando Ari Barroso ao Estado, que havia se apresentado no cabaré do Perci, em Vitória. Eles foram ao Rancho Fundo com alguns amigos meus, especialmente uma rapaziada rica de Santa Tereza, que aparecia por lá para caçar, pescar e fazer farra. Nesse dia apareceram Alcebíades Guaraná, Hayzer, Alfredo Vervloet, Clóvis Gomes e Mário Pretti. Ah, estava presente também o Ethel Nogueira de Sá, engenheiro residente do Governo na região. Quem assistiu mesmo ao Rancho Fundo nascer foi o Clóvis Gomes, pois foi o primeiro a falar do nome.

Foi extraordinário o volume de madeira que encontrei no norte do rio Doce. Vi perobas de mais de 300 cm de rodo, que às vezes presenteava os madeireiros de Colatina, pois eu as cortava e deixava no leito da estrada para eles apanharem. Mas eram poucos que iam lá só para isso, a distância (30 quilômetros de distância) não compensava. Era antieconômico porque eles dispunham de madeira próxima a cidade de Colatina. Além de ser riquíssima em madeira, a floresta também era deslumbrante. Mas a mata não era virgem como aparentava e imaginava o Governo. Eu encontrei muita gente morando nela. É bem verdade que não eram fazendeiros. Uns baianos, sitiante em sua maioria.

Quando cheguei por lá, Colatina tinha um número ainda pequeno de casas, mas o comércio crescia por causa da atividade madeireira. A cidade cresceu muito. Virou, em pouco tempo, o maior centro madeireiro do País. Eu me recordo ainda hoje dos seus primeiros madeireiros: Gordiano e Tijê Guimarães, Heitor Nogueira, Geraldo e José, também Nogueira e a Companhia Nacional de Madeira. A primeira serraria de Colatina pertenceu a um português, Cunha. Existia também a de Barbados, mas era do Governo. Depois é que foi comprada pela família Baião. A do Cunha só servia a cidade na sua febre de construção. O diabo de Colatina era quando chovia muito: os defuntos desciam tudo do cemitério, que ficava em cima de um morro. Vinham parar na rua principal. Mas, com o crescimento vertiginoso do lugar, chegaram para se instalar lá até firmas francesas. Tinha uma que era gerenciada por Jorge Poasum e depois Jorge Delanos. Era a maior compradora de jacarandá.

Naquele tempo somente essa empresa exportava através do porto de Vitória, uma média de 500 metros cúbicos mensais de jacarandá. A Alemanha mandava comprar jequitibá. Na floresta eu vi alguns jequitibás que 10 homens não abraçavam. Os que tiraram de peroba, jequitibá e jacarandá foi um mundo. De Colatina, saíam depois dessas empresas todas que foram parar lá, uma média de dois mil metros cúbicos de peroba.

Quando cheguei na região encontrei os índios botocudos mas já aldeados e explorados por um desgraçado de um médico, que tomava conta deles para o Governo Federal. Aryzio Vianna, que era uma pessoa muito humana, se desentendeu com ele. Mas não adiantou muito porque Aryzio era apenas do Governo Estadual. Não quero nem dizer o seu nome porque ele já é morto e não pode se defender. Por esse tempo, a Companhia de Colonização começou a levar para a região os poloneses. E próximo ao aldeamento dos índios instalaram esses novos colonos. Pegaram os índios e levaram para Minas Gerais, em Krenaque. Eu nas minhas conversas com os índios ouvia sempre que o terreno era todo deles. Esse médico, que se enriqueceu nas costas dos índios, foi a pessoa mais interessada em tirá-los de lá.

Várias vezes fui ao aldeamento deles, mas os índios não gostavam da gente lá. E os poucos índios, geralmente os chefes quando conversavam com a gente demonstravam sua imensa insatisfação com o médico e não demonstravam a menor confiança na gente. "Terra nossa, terra nossa", repetiam sempre. Eu não abri estrada em território indígena, já que eles se encontravam próximo a Águia Branca. Agora, o que tinha de animais naquelas florestas, era um mundo. Volta e meia um empregado vinha me chamar para avisar que estava passando uma manada de porco do mato. Às vezes de 500 a 600 cabeças. Era um perigo quando passava. A gente era obrigado a trepar nas árvores. E para matar um porco do mato tinha que deixar passar toda a manada e pegar os últimos, senão a manada atacava a gente. A caça era realmente muito abundante. Você encontrava veado na estrada, muita paca e anta. As onças costumavam atacar até o acampamento. Por isso, lá viviam caçadores e compradores de pele.

Leão do Norte, seu nome mesmo era Pedro Santana, mas ninguém assim o conhecia além de bandidos, matou muita onça. Era um homem destemido que veio do Nordeste. A gente dizia do Norte, onde trabalhava nas Lojas Pernambucanas, no transporte de dinheiro. Fez um serviço duro para os donos e veio refugiar-se no Espírito Santo. Aliás, a maioria do pessoal que a gente tinha trabalhando era dessa espécie. Antes de ser o meu encarregado de serviço, Leão foi de Cyro Pitanga. Ele fez uma grande amizade comigo. A espingarda dele tinha três canos com duas balas envenenadas sempre e uma chumbada. O Leão acabou sendo a lei na região, um verdadeiro justiceiro, ele acabava com o pessoal perigoso que vivia assaltando os colonos. Naquele tempo não havia policiamento. Ele era um tipo interessante: mulato, baixo, de fala mansa, e andar vagaroso. Já morreu tem quase 10 anos. Deixou grande saudade nos amigos como eu.

Naquela época chamavam de garimpeiros os homens que faziam estradas. Para conseguir gente para trabalhar nessa região ou você ia buscar baianos ou topava trabalhar com foragidos. A gente, na verdade, só empregava mesmo assassino, ladrão de jeito nenhum. Eu sempre conversava a respeito do crime de cada um para saber com quem estava lidando e para ter uma idéia do interesse da polícia em cada um. Eu sempre colocava o pessoal na folha de pagamento com outro nome, pois quando a polícia aparecia queria conferir pelo nome da folha. A maioria acabou se tornando amigo. Muitos chegavam sozinhos e depois iam buscar a família. Quando isso ocorria, eu fazia um ranchinho para eles e mandava até buscar a família em Colatina. Ah, uma coisa: eu não aceitava os empreiteiros de Cristo (termo usado na época para os cocaeiros). Agora a gente tinha é que demonstrar coragem e andar sempre armado. Eu além, do meu 38 na cinta, carregava sempre uma Weschester.

Por esse tempo, para chegar em Linhares era uma dificuldade. Havia apenas uma miserável estrada que ligava Colatina a ela. O melhor transporte era pelo rio Doce. Era feito em navios gaiola, depois surgiram umas lanchas velozes do Moacir Brotas. Falando de rios, eles tinham peixe prá diabo. A lagoa Juparanã era habitada por jacaré, Linhares era uma pequena vila.

Eu construí 30 quilômetros de estradas. Levava de cinco a seis meses para fazer um quilômetro. As estradas eram feitas a pá, picareta e enxadão. O método era o seguinte: a gente recebia a locação e fazia a derrubada da mata. Derrubava tudo num raio de 15 metros para um lado e outro tanto para o outro lado. Depois eu tirava toda a madeira e colocava no leito da estrada para ser apanhada pelo madeireiro. A princípio, cheguei a reunir 100 empregados, mas depois o número caiu muito. Não era qualquer um que estava disposto a enfrentar a floresta. Acabava ficando mesmo o pessoal do crime. No início da construção da estrada, até Vargem Grande, houve também muito impaludismo. Improvisamos até um hospital. Os médicos iam de Colatina e às vezes de Vitória. No começo morreu muita gente, principalmente operários.

Na floresta existiam cobras perigosíssimas. A pico-de-jaca era uma jararaca terrível. Havia também a urutum, que era uma cobra toda preta com uma cruz branca na cabeça. As cobras geralmente, quando dão bote, alcançam uma distância correspondente a seu próprio tamanho: mas com essa era diferente, ela ficava em pé na sua calda e depois dava um vôo maior que duas vezes o seu tamanho. Certa vez, encontrei uma dessas no caminho. Dei vários tiros de Weschester e não acertei. Era hábito falar por lá que essa cobra marcava as pessoas. Por isso o Leão perseguiu essa até matá-la. Havia um mestre, pros lados de Nova Itália, mestre Pedro, que tratava de mordedura de cobra. Uma cobra mordeu a mulher de um operário nosso e mandamos chamar o mestre. Ela estava botando sangue pelo corpo todo. Peguei um empregado ir pegar o homem. Já o encontrou vindo para os lados do Rancho Fundo. Como não andava montado, despachou o empregado com ervas e folhas que foram usadas no chá e na cobertura da ferida. Quando ele chegou, a mulher já estava até recuperada. Depois no acampamento, assobiou coisas bem diferentes e as cobras surgiram. No meio do grupo ele mostrou a que tinha picado a mulher. Essa história, quando contei para outras pessoas, elas riam. O Bley chegou a dizer que só ouvia porque tinha uma consideração especial comigo. Mas depois ele se convenceu quando viu uma reportagem de um mestre na revista Cruzeiro.

E a nossa estrada ia permitindo mesmo a entrada de colonos para novas terras. Cada semana aumentava o número de caminhões com o pessoal. Eles iam escolher o lugar para morar e fazer as suas propriedades. Inclusive, a princípio, esse pessoal se abastecia no armazém do Rancho Fundo. Era sempre em regime de troca. Traziam farinha e levavam querosene. Fubá e rapadura, e pegavam banha. E outras trocas mais.

A estrada que construí chegou até as imediações de São Gabriel da Palha. Quando percebi, já existia uma povoação na região e, de repente, roncavam os tratores tombando árvores. Começavam até a aproveitar os troncos, pois muitas árvores foram cortadas em estaleiros porque eram volumosas. Quando caía, cada árvore daquelas, fazia um barulho que parecia que o mundo ia se acabar. Com trator veio também a hélice (motosserra) que derrubava uma árvore com mais velocidade, ajudada que era por um motor a gasolina. Depois disso a floresta não resistiu. Quem conta não sou mais eu, que só vi o começo...

Fonte: http://www.seculodiario.com.br/arquivo/2008/janeiro/07/index.asp

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