segunda-feira, 8 de março de 2010

CONSTÂNCIA DE ANGOLA: Mulher, Mãe e Guerreira do vale do Cricaré

Mulher de Angola com filho nas costas. Angola é um país na África Atlântica de onde foram arrancadas milhares de pessoas que vieram à força, trabalhar como escravos no Brasil. Imagem disponível em:

São Constâncias que continuam perdendo seus filhos para os senhores, queimados pelo mesmo fogo da discriminação e do preconceito, e que mais tarde voltam, também, irremediavelmente, para seus braços, mortos, como de costume...
São meninos que choram, eternamente... São mães guerreiras que continuam lutando pelo direito à vida e, sobretudo, pela liberdade sonhada...”
(Maciel de Aguiar)



Por Izabel Maria da Penha Piva*
(colaboração Rogério Frigerio Piva)


Província do Espírito Santo, sertão de São Mateus, segunda metade do século XIX. Gritos se espalham pela paisagem composta por montanhas e um longo rio que corta a região, o Rio Cricaré. Seu nome quer dizer sonolento, dorminhoco, por suas águas tranqüilas que desembocam no mar. E sonolento, impassível, o rio escuta esse lamento. São gritos de dor. Uma mulher está acorrentada ao tronco e constantemente é chicoteada por afirmar que matará sua senhora. Nesse tronco há uma negra que não se dobra à dor das chibatadas. Que deseja a morte daquela que lhe imputou a pior dor que poderia uma mulher sentir. Não são chibatadas que lhe estraçalham a pele escura o motivo do lamento. Mas o filho que lhe foi arrancado dos braços maternais, e jogado em uma fornalha. Apenas por que, como criança que era, chorava. Apenas por que seu choro incomodava a sinhá. Esta em um momento de domínio total sobre a vida de seus escravos arrancou o bebê dos braços da mãe e lhe atirou na fornalha da fazenda. A mãe, açoitada e acorrentada ao tronco, grita e chora. É um grito de dor de mãe. É um grito de uma mulher. Seu nome: Constância de Angola.

Essa história, contada pelos descendentes de escravos da região do Vale do Cricaré, emoldura a saga da colonização da cidade de Nova Venécia, que, antes chamada de sertão de São Mateus, surgiu no vale do Rio Cricaré. São histórias de um povo que se misturava entre os sangues índio, negro, mineiro, nordestino e europeu. Da cidade de São Mateus, saíram os colonizadores, abrindo a mata, enviando seus escravos a abrir fazendas, a plantar cana-de-açúcar, café. Essa região recebeu montantes de italianos e outros povos europeus, além de migrantes nordestinos que também trabalhavam nas lavouras ou nas casas-grandes. Uma dessas casas foi o casarão sede da antiga Fazenda da Serra dos Aymorés, na atual localidade de Serra de Baixo, em Nova Venécia, conhecidos como Casarão dos Escravos, e que hoje desaparecido, permanece vivo nas memórias dos moradores mais antigos. São lembranças que, vindas da oralidade popular, deixam várias lacunas na História. Por exemplo, quem foi Constância de Angola?

Segundo o pesquisador Maciel de Aguiar, em seu livro “Os Últimos Zumbis”, há registros (guardados no cartório do 1º Ofício de São Mateus) de uma escrava de nome Constância, “criola de cor parda, solteira” que foi comprada pelo Coronel Matheus Gomes da Cunha, irmão do Major Antonio Rodrigues da Cunha, o Barão de Aymorés, por volta de 1880. Enquanto o barão, além de possuir a fazenda “Cachoeiro do Cravo”, também abriu a fazenda “Serra dos Aymorés”, seu irmão Matheus Cunha era proprietário das fazendas “Cachoeiro do Inferno”, nas proximidades da cachoeira homônima no distrito de Nestor Gomes, em São Mateus, e a “Boa Esperança”, localizada em Serra de Cima, distrito sede de Nova Venécia. É possível então que Constância tenha sido levada para essa fazenda, aberta com o objetivo de cultivar café na segunda metade da década de 1870 e nova frente de produção daquele fazendeiro.

Casarão da Fazenda Cachoeiro do Cravo, às margens do braço sul do rio São Mateus ou Cricaré, no distrito de Nestor Gomes, São Mateus. Pertenceu ao Major Antônio Rodrigues da Cunha, depois agraciado com o título de Barão de Aymorés. Este local é testemunha do suplício de Constância, onde, próximo dali, jazem seus restos mortais. Foto: Rogério Frigerio Piva, 17/02/2010.

Seguindo este pensamento os pesquisadores Maciel de Aguiar e Eliezer Nardoto situam o drama de Constância na Fazenda Boa Esperança e afirmam que esta se localizava na região do atual município de Boa Esperança, o que para eles explicaria a origem do nome. No entanto, há evidências documentais e orais, entre elas o processo da compra da terra denominada “Boa Esperança”, requerida pelo Sr. Coronel Matheus Gomes da Cunha, no ano de 1876, na região denominada Serra dos Aymorés, primeiro nome pelo qual Nova Venécia foi conhecida. A planta da propriedade foi medida pelo agrimensor Cassiano de Castro Nunes no ano de 1880. Considerando essa localização, a História de Constância, poderia ter se passado na região hoje conhecida como Serra de Cima, cortada pelo afluente do rio Cricaré, não por acaso chamado de “Córrego da Boa Esperança”, que nasce na Fazenda Santa Rita, localizada atrás da cadeia de pedras graníticas da qual faz parte a Pedra do Elefante.

Matheus Cunha e seu irmão Antonio Rodrigues da Cunha, o Barão de Aymorés, abriam essas propriedades no intuito de plantar café. Nessas regiões conhecidas como o sertão de São Mateus, apenas davam continuidade a um projeto estabelecido para todo o sudeste do Brasil, a expansão das lavouras cafeeiras em vista da exportação desse produto para a Europa e os Estados Unidos. A economia brasileira se assentava em torno dos cafezais e colocava entre lavouras e terreiros, histórias de vidas de origem completamente distintas que se encontravam como escravos africanos, pobres italianos e retirantes nordestinos.

Muitos outros relatos de cunho popular, tanto dos descendentes de escravos, como o de Lauro Santos, transformado em livro por Maciel de Aguiar, quanto dos descendentes de imigrantes italianos como das famílias Merlin, Pettene, Cadorin e de descendentes de retirantes nordestinos, como da família Galvão, afirmam ser nesse local (Serra de Cima) a antiga moradia da personagem de uma lenda corrente nas conversas dos mais antigos da região, a história da mulher que virou serpente. Essa mulher, identificada como Dona Lina, seria na verdade Francelina Cardoso Cunha, segunda esposa de Matheus Cunha e cunhada do Barão de Aymorés. O pesquisador Maciel de Aguiar a cita como a mulher que teria jogado o bebê de Constância no forno, retirando esse terrível acontecido da culpa de Dona Rita Cunha, mãe do Barão, como pensavam alguns moradores de São Mateus ou mesmo da Dona Theodózia Vieira da Cunha, esposa do Barão de Aymorés.

Um dos poucos vestígios arqueológicos do antigo "Cemitério Particular da Fazenda Boa Esperança" o túmulo visto na foto que tem ao fundo a Pedra do Elefante, seria da Senhora Francelina Cardoso Cunha, esposa do antigo proprietário da fazenda Coronel Matheus Gomes da Cunha. Segundo a lenda ela teria se tornado uma serpente após a sua morte. O lugar hoje é conhecido como Serra de Cima e ainda é cortado pelo córrego que evoca o antigo nome da fazenda: Boa Esperança. Infelizmente, o túmulo aqui visto hoje encontra-se destruido. Foto: Rogério Frigerio Piva, 1993.

Lina Cunha, por ter feita tamanha crueldade com a criança, precisou ser retirada da fazenda e levada para a cidade de São Mateus, pois seus familiares temiam alguma represália dos escravos da propriedade. Mas sua fama de mulher má a acompanhou a ponto de afirmarem que ela, após a morte, teria se tornado uma serpente que assombrava os moradores da Serra de Cima. Tal assombramento só teve fim quando um bispo, após benzer o local, pediu a todos de Nova Venécia (na época denominada Barracão) que fechassem suas janelas voltadas para o rio Cricaré, e não olhassem as águas barrentas descendo ao mar após uma grande enchente. Dizem que a mulher, virada serpente desceu rio abaixo e desapareceu no mar. São lendas que corroboram as muitas histórias de sofrimento passadas por essa gente que colonizou o sertão de São Mateus.

Quanto a Constância, fugiu da fazenda resguardada por um grupo de quilombolas liderados por Viriato Cancão-de-fogo, um dos líderes negros da região. Participou de várias lutas contra forças do governo e capitães-do-mato, em favor da libertação de seu povo. Sofreu emboscada, foi presa, surrada em praça pública, e novamente libertada por Viriato Cancão-de-fogo que “invadira a prisão de São Mateus durante os festejos do padroeiro, na hora da procissão”, ainda segundo Maciel de Aguiar.
Tempos após a fuga, Constância se deparou com um velho inimigo, José de Oliveira, que na época da morte de seu filho era feitor na fazenda de Matheus Cunha. Agora capitão-do-mato, adquirira o apelido de “Zé Diabo”. A luta entre os dois se deu na região conhecida como Piaúna, braço norte do Rio Cricaré ou São Mateus. Constância morreu nessa luta, porém seu algoz também teve seu fim. As matas da região foram testemunhas da sangrenta luta entre os dois, contada mais tarde pelos ex-escravos.


Constância, conhecida pela alcunha “d’Angola” ou “de Angola”, referência a região de onde vinha ou onde vivia tribo da qual descendia na África, foi enterrada no cemitério dos escravos da Fazenda Cachoeiro do Cravo, pois esse era seu desejo, já que as cinzas de seu bebê teriam sido ali depositadas, com o consentimento do Major Antônio Cunha. O local, de rara beleza, guarda ainda a lembranças desse tempo de escravidão, tristeza e dor. Mas precisa ser preservado. As histórias não podem ser esquecidas. É preciso gritar aos quatro ventos que há tempos atrás uma mulher tornou-se guerreira e líder de um povo em busca de libertação. E essa história aconteceu tão perto de nós.

Vista do muro do antigo "Cemitério Particular da Fazenda Cachoeiro do Cravo" com o braço sul do rio São Mateus ou Cricaré ao fundo. Segundo Maciel de Aguiar, que o chama de "Cemitério dos Escravos", neste local, hoje abandonado e em ruínas, jazem Constância de Angola e seu filho. Destruição e abandono para com a nossa memória, para com a memória de Constância. Foto: Rogério Frigerio Piva, 17/02/2010.


Ainda hoje mulheres lutam por seus filhos. Tornam-se guerreiras para sustentá-los. São mães como Constância. Quem hoje passa na estrada que corta a fazenda do Cachoeiro do Cravo, ou como conhecemos, a Cachoeira do Cravo, não faz idéia que naquelas terras estão os restos mortais de uma mãe com seu filho bebê. Agora enfim, na morte, eternamente juntos. O colo de mãe que sentiu a ausência do filho jogado ao forno, recebe suas cinzas num longo abraço, que dura eternamente, num prazer que só as mães podem sentir porque são mulheres, são mães. Constâncias.


Referências Bibliográficas:

AGUIAR, Maciel de. CONSTÂNCIA D’ANGOLA: A eterna luta das mães negras. Série História dos Vencidos. Caderno 03. Editora Brasil-Cultura: Centro Cultural Porto de São Mateus: São Mateus, 1995. 31 p.

AGUIAR, Maciel de. LAURO E ROSALVO: Cantadores e Tocadores. Série História dos Vencidos. Caderno 20. Editora Brasil-Cultura: Centro Cultural Porto de São Mateus: São Mateus, 1996. pp. 18, 29-30.

AGUIAR, Maciel de. OS ÚLTIMOS ZUMBIS: A saga dos negros do Vale do Cricaré durante a escravidão. Brasil-Cultura: Porto Seguro (BA), 2001. pp. 59-73, 310, 323-325.
NARDOTO, Eliezer. e LIMA, Herinéa. HISTÓRIA DE SÃO MATEUS. EDAL - Editora Atlântica Ltda: São Mateus, 1999. pp. 25-26.










*Izabel Maria da Penha Piva é historiadora graduada e mestra em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo onde produziu a dissertação "SOB O ESTIGMA DA POBREZA: A Ação da Irmandade da Misericórdia no Atendimento à Pobreza em Vitória - Espírito Santo (1850-1889)", defendida em 2005. Vem atuando no magistério, seja na educação infantil, ensino fundamental e médio, há mais de 15 anos. É professora na Escola Estadual de Ensino Médio “Dom Daniel Comboni”, em Nova Venécia. É integrante e colaboradora do Projeto Pip-Nuk.

5 comentários:

Driih' Possmoser disse...

A Isabel é uma ótima professora - que continue assim:

Katia Ludemann disse...

Olá Izabel, sou de São Paulo e estive ano passado em São Mateus em férias e em meu hotel tinham páginas de jornais emoldurados com textos de Nardoni, tratavam-se de Historia da Cati-Tantã. Como sou roteirista e lendo aquele texto me deixou muito curiosa a respeito das histórias daquela época nesta região. Será que voce poderia entrar em contato para falarmos a respeito, pois, nestas histórias aparecem a guerreira Constancia também. Meu email pessoal é katialud@gmail.com
desde já muito agradecida
abs
Katia Ludemann

Unknown disse...

aqui Rosinte Ribeiro filha Zilda boa Ventura dos remédios.minha mãe contava essa verdadeira história.ela morava cachoeira do gravo o de morava com seus pais era pequena e ainda lembrava .a.mae dela catano todas crianças da beiro rio povo gritava sai sai todos da beira do rio tvai descer uma serpente .minha mãe conta túmulo dela rebentou ela desceu na enchente do rio mãe conta ela usava.dava tapa na Aqua subianas altura Aqua ele gritando

Rosa Maria disse...

Boa tarde!
Que felicidade encontrar essa garota gente!
Izabel, sou Rosa sempre fomos amigas aqui na Serra e você sumiu.
Futucando as coisas aqui, me interessou esse nome e te encontrei. Que felicidade!
Muito bom saber de vc garota.
Abraço

Semita Yahudin. disse...

Esses pretos são a Tribo de Yahudá, os Yahudins. Os chamados de "índios", a Tribo de Aser. Verdadeiramente os israelitas hebrews das escrituras.

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